Quase vinte


Eu não sei exatamente quando começou esse lance de questionar a minha existência, mas é duro chegar aos dezenove e ainda não ter descoberto razão, motivo, porquê ou por quem estou aqui. Tenho quase vinte anos, e se eu descobrisse agora que vou morrer daqui algumas horas, eu morreria sendo o pior ser humano que eu poderia ter sido. Eu não fiz um por cento de tudo que eu já quis um dia, e nem fui feliz o quanto eu esperava. A maior parte desse tempo, eu passei trancada no meu quarto, com a intenção de guardar a minha alma em algumas páginas. Transformar cada fragmento dela em um bocado de palavras, mesmo que sem sentido algum. Porque eu não conheço minhas vontades e sei apenas o que é certo quando o errado já foi feito. Eu não sei o tempo que leva para cada coisa estar completamente na minha vida, e eu não sei o tempo que cada pessoa leva para sair. E eu sofro durante esses processos. Eu sofro por cada movimento que eu desconheça. Eu sofro por querer saber o motivo da ida, do adeus, e até da volta - que não dura muito tempo. E nunca saber. Desde muito cedo questiono tudo, e desde muito cedo, sou incompreendida. Minha professora de literatura uma vez não soube responder uma das minhas perguntas, e eu fiquei intrigada. Se nem ela - que estava ali na minha frente com todas as respostas - soube me responder, quem mais saberia? E eu também vivo me questionando. A minha avó acredita em Deus mas nunca soube me explicar a existência dele. Eu também acredito, e não sei explicar a minha. Meus pais não parecem ter me planejado um dia, estão sempre ocupados, preocupados, ausentes. Eles também não saberiam explicar. Ninguém saberia, na verdade. E eu odeio o fato de estar aqui por algum motivo, e com dezenove anos ainda não ter descoberto. Parece que sou incompatível com tudo que tenha vida, apenas existo, e a qualquer momento vou ser levada para algum lugar no céu. Algum lugar para onde as pessoas que nunca fizeram o mal, vão. Um lugar para onde as pessoas que nunca souberam fazer o bem para si mesmas, vão. Junto com tantos outros incompreendidos, incompatíveis, e que não souberam para que viveram um dia. Com tantos outros escritores de quinta que souberam apenas olhar para o próprio umbigo e questionarem suas próprias dores. Tantos outros sozinhos. Mas eu tenho medo de ir, eu também não saberei o que fazer lá. Não saberei como encontrar os meus pais do outro lado, e não sei se ainda saberei escrever. O meu problema está em questionar demais. Eu tenho quase vinte e já tenho medo de morrer. Medo de morrer por mais vinte anos.

Cada um tem o seu jeito de lidar com um coração partido.


Foi de tardezinha, quase noite, que o seu adeus tocou a parte mais profunda da minha alma, fazendo todo aquele emaranhado de sentimentos e dúvidas, de promessas e certezas, de expectativas e medos se resumirem em apenas uma frase: ela não volta mais. E então eu pude ouvir cada parte do meu corpo se quebrar. As minhas pernas, a minha cara, o meu coração, as minhas pregas vocais - me deixando impossibilitado de gritar - e mais uma vez, o meu coração, que continuou se quebrando até não poder se dividir mais. O barulho era ensurdecedor. Depois de alguns dias, o silêncio tomou conta, era ensurdecedor também. As noites tornaram-se mais longas e frias, e os refrões de Djavan, perderam o sentido. É como dizem, o amor é bonito até alguém te decepcionar, mas você não fez isso, cara! Larguei paixões sentadas para caminhar ao seu lado. Você me virou do avesso e me fez acreditar que esse era o meu lado mais bonito. Rimos até a barriga doer no dia que somamos mais um mês de namoro (mesmo você achando isso ridículo) e no dia seguinte eu morri de tristeza porque era o meu aniversário e eu odeio esse dia. Depois rimos outra vez. E hoje eu choro, desde que você se foi, eles tornaram-se repetidos. Eu choro sua ausência. Escrevo a sua ausência. Você dizia que não se lembrava da última vez que lhe escrevi algo, mas não fazia questão de lembrar que me ensinou a dizer tudo olhando dentro dos seus olhos, que agora, olham para outra direção. E por isso voltei a escrever, por isso voltei a beber. Não dá para ser sóbrio todos os dias tendo um coração partido. Mas depois da ressaca, o que sobra, me dilacera. Por isso escrevo, por isso bebo. Preciso continuar sentindo algo, mesmo que seja a sua falta. Cada um tem o seu jeito de lidar com um coração partido. Mas eu não estou sabendo lidar.

Bukowski estaria bêbado em uma esquina qualquer e Leminski, fazendo poesia.


Mas o meu vocabulário, mesmo que vasto, não encontra mais sílabas que caibam você. Um copo cheio de qualquer bebida barata não é mais capaz de fazer com que eu esqueça das vezes que me disse para não beber. Eu não bebo mais, o álcool não é mais escapatória para o que eu sinto. E eu sinto muito por isso. Leminski no meu lugar, se punha a beber, e Bukowski a chorar. Não é drama de quinta categoria, é desespero. Tudo que eu fazia certo, tornou-se errado, e o que me fazia esquecer o errado, não faz mais efeito. As paredes continuam falando de você, e eu pensava que esse era só mais um dos efeitos do álcool, mas não. Seu cheiro continua aqui, como inspiração para qualquer texto sentimental, mas você não está. Deve estar por aí, em qualquer canto da cidade com a minha blusa e nem percebe. Deixando para trás um passado que te veste tão bem e que não cabe em outra pessoa. Você se moldou para ser exatamente do tamanho do que eu sinto. E me mudou. Hoje eu minto. Minto que te odeio e que você passou. Minto enquanto o amor me atravessa de todas as formas possíveis, rasgando cada canto que parecia estar intacto ou esquecido. Minto quando engulo o choro por não suportar a dor. Minto por dizer que suporto o amor. Minto porque o amor dói, mas a dois é suportável, só que você não está aqui. Minto ao dizer que minhas palavras não são mais suficientes para carregar o peso disso tudo, sendo que, são os seus ombros que sustentam o peso delas. Bukowski estaria bêbado em uma esquina qualquer e Leminski, fazendo poesia, mas eu estou preso a tudo isso. Estou feito criança que não se move sem antes estar agarrado aos braços de alguém, pois não sabe onde pisar sem que se machuque. Estou feito cão sem dono que implora por um pouco de comida e um pouco mais de amor. É como dizia o Bukowski: O amor é um cão dos diabos. Dele, conheço os sintomas e os hematomas, como o Leminski. Do amor, conheço você. Em você, me reconheço.